O PIRGO DE CHAVES

Na última década do século IV ou primeira do V, um sismo de que o bispo Idácio de Chaves nos deixou notícia na sua Crónica, destrói o edifício central, provocando a derrocada da enorme abóbada de canhão que o cobria e sepulta, sob toneladas de tijolos, os desafortunados aquistas que se banhavam na grande piscina, conservando em perfeitas condições nas lamas hidromórficas, não só os seus ossos, mas também os seus pertences em madeira, osso e metal. Formou-se assim uma espécie de cápsula do tempo em que viajou até nós, praticamente intacto, um instante num dia de uma comunidade do fim do período romano.

Os indivíduos suficientemente afortunados para se poderem permitir a interromper a labuta diária e deslocar–se a uma cidade termal como  Aquae Flaviae para tratar as maleitas do corpo, dispunham inusitadamente de tempo livre (otium), que ocupavam a jogar. Por ser considerado uma distração das obrigações dos cidadãos, o jogo era visto como uma atividade censurável e inclusivamente proibido por lei durante todo o ano exceto durante as festas das Saturnálias. Esta interdição não parece ter sido respeitada, a avaliar pela proliferação de tabuleiros gravados em espaços públicos por todo o império e as referências de que era amplamente praticado nas tabernas e lupanares.

O jogo é uma suspensão do tempo, um adiar da morte. Na Odisseia, Ulisses encontra os pretendentes de Penélope a jogar um antecedente do jogo das damas à porta do palácio.

Nas escavações arqueológicas das termas de Chaves encontrámos diversos artefactos relacionados com o jogo, como um tabuleiro gravado nos degraus da piscina B, outros dois num fragmento de tijolo, numerosas peças de jogo em madeira e osso, dados e uma torre de bronze que servia para lançar os dados e evitar que se fizesse batota, o pirgo.

Trata-se de uma pequena torre em bronze com degraus no seu interior executada em opus interassile, uma técnica originária do oriente próximo e generalizada por todo o império durante o séc. IV d.C., que consistia em recortar uma placa metálica de forma a criar um padrão geométrico ou vegetalista intricado. Esta técnica era frequentemente utilizada para a produção de joias, ou objetos de uso quotidiano, como fivelas e elementos de cinturão. Era também comum a inclusão de letras formando inscrições Este objeto elaborado e requintado servia para lançar os dados de maneira que o resultado fosse o mais aleatório possível e evitando que os jogadores pudessem fazer batota. Dois outros pirgos conhecidos encontram-se  no Landsmuseum de Bona, na Alemanha e no Museu do Cairo, no Egipto.

Fotos: Pedro Maia – Arqueologia e Património